terça-feira, 22 de setembro de 2015

Aí Zonassulense, já ouviu  falar  na Rosa Parks? 



A Zona Sul do Rio de Janeiro e seus habitantes médios me fazem mal. Eu sinto ódio de andar por aquelas ruas e ver toda suntuosidade construída com sangue, o consumo absurdo em lugares ridiculamente caros, enquanto vejo a calma em rostos brancos indo pra praia alegremente.

Mas se já não bastassem todos os privilégios zonassulenses - a gente sabe que pra essa elite nenhum privilégio é demais – não é suficiente desfrutar do que se tem a poucas quadras de casa, é necessário ter exclusividade, privatizar o espaço público como se a praia fosse uma área de lazer incluída na folha de pagamento do condomínio. Também é necessário sumir com os pobres e negrxs, custe o que custar: cancelam os ônibus, chamam a polícia, e, no limite, se organizam como gangues atacando ônibus lotado sob o pretexto de “justiçar” quem está fazendo arrastão.

Muita gente se espanta, como se a segregação sócio-espacial drasticamente marcada pelo corte étnico racial fosse algum tipo de novidade ou desvio de conduta de algumas “maçãs podres”. Só que a segregação é regra nesse jogo.

Pro Zonasulense médio, o temor de se tornar vítima tem cor, estética, tom de voz, gosto musical e CEP. Mas não se enganem, o celular roubado é só uma atualização do velho sentimento de ódio que essas pessoas tem desde sempre.

Então o recado é curto e grosso: Não tá gostando? Que tivesse pensado melhor antes de sequestrar, escravizar, matar e violentar de todas as maneiras possíveis nosso povo e depois relegá-lo nas piores condições, nos isolar nos cantões, morros e empregos subalternos. Tá com medo de ser roubado? Você tinha era que agradecer, porque na verdade vocês nos devem até a alma.



Eu não falei nada sobre a Rosa Parks né? Então... O sentimento é o mesmo, a inspiração é a mesma, só que o tempo tá passando, vocês não aprenderam nada e a nossa paciência já acabou.    

terça-feira, 28 de julho de 2015

Quem chora nossos mortos? 25 anos da Chacina de Acari




No dia 26 de julho de 2015 completou-se 25 anos do sequestro e desaparecimento de 11 jovens na Favela de Acari, zona norte do Rio de Janeiro.

No dia 27, ocorreu um evento em memória e solidariedade ao caso, no prédio da OAB, centro do Rio. Pela primeira vez tive a oportunidade de escutar a história de sofrimento, resistência e luta dessas mães. Não apenas de Acari, mas diversas outras mães que continuam a perder seus filhos e filhas recentemente, e de distintas formas, para esse sistema racista, classista e genocida.

É difícil conter as lágrimas ao escutá-las. Muito difícil mesmo. As histórias comovem, revoltam, mas, principalmente, faz borbulhar um ódio incontrolável e uma grande impotência.

Ao escutar aquelas mães, não conseguia parar de pensar que poderia ser a minha mãe ali, dando seu relato. Que eu poderia facilmente ser a vítima de qualquer uma daquelas histórias. Que poderia ser eu o rapaz de 29 anos, bonito, saudável e cheio de vida, trabalhador, voltando para casa com os amigos, parado pelo exército na frente de uma favela, desarmado e sem nenhuma condição de se defender, tendo o carro alvejado. Sobrevivente, mas sem as pernas, incapacitado de fazer seu corre, necessitando de ajuda da família, pelo menos até se adaptar a essa nova, injusta e brutal realidade, simplesmente por morar no lugar errado, ter a cor errada...

Qual a garantia que temos de voltar para nossas casas em segurança? Bem, se você é preto, pobre e periférico, absolutamente nenhuma.

Essas mães, nossas mães, amigos e entes queridos, nos ensinam a nos comportarmos em uma realidade que mais parece um contexto de guerra. Você tá bem vestido? Apresentável? Tome cuidado com quem anda, como anda e onde anda. Mas principalmente, faça tudo que puder para não parecer suspeito, esteja atento, porque você pode ser confundido com bandido. Se a polícia te parar ou qualquer outra pessoa fizer algum absurdo contigo, não reaja, obedeça e respeite: “sim senhor, não senhor”. E tente não deixar ele colocar a mão no seu bolso, eles podem implantar droga em você e te levar. Se ele te bater, tente fazer o máximo para que seja rápido, não provoque a ira do homem de farda e torça para não entrar no carro, porque se entrar, seu destino tá na mão de deus.

A gente escuta o tempo todo que quem morre é bandido. A gente sabe que não, mas a gente tenta “correr pelo certo”, como se isso fosse garantia de alguma coisa, só que não é. Você não tem garantia de nada.

Você é estudante? Trabalhador? Que se foda! Um verme cheio de cocaína na cara vai te dar um sacode, vai bater na sua cara, no seu joelho e no seu saco, enquanto diz para você entregar logo o que está em cima, porque “se tiver eu vou achar e ai será pior”. “É melhor colaborar, porque você sabe, eu podia te colocar para dentro. E tem uma “raspada” ali te esperando”. Ele vai falar contigo com “gíria de bandido”, ele está tentando se comunicar na sua língua. E se tudo não acabar muito mal e ele finalmente se convencer, depois de toda violência e constrangimento, de que você não está devendo nada, bem, você sabe, “abordagem é para sua segurança”.

E é claro, há de se ponderar que isso tudo é no melhor dos cenários. A coisa pode ficar MUITO mais feia. E o que é mais absurdo é que isso não é uma experiência tão específica e em primeira pessoa assim. Isso está ai, público e colocado pra quem quiser ver, basta estar um pouco aberto pra escutar. É a experiência de qualquer preto, preta, favelado e favelada.

Todo mundo sabe o absurdo que é o tal do auto de resistência. Um dos relatos ontem, contado por um pai, era que seu filho de dois anos foi atingido e morto por uma bala perdida e o caso foi tratado como “auto de resistência”. Como assim? Uma criança de dois anos é morta por um tiro e sua morte é enquadrada como auto de resistência? Até onde é possível chegar esse absurdo cínico e genocida?

A gente tá muito fodido. E cada dia que a gente vive é uma vitória parcial nessa porra de campo de batalha. A única coisa que eu sei é que enquanto eu tiver sangue correndo nas veias e ar entrando nos meus pulmões eu quero estar gritando com toda minha força que as nossas vidas importam.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Alguém nasce negro/a no Brasil? Notas sobre “racismo reverso”, “colorismo” e outros devaneios “racialistas”

De uns tempos para cá, tem sido cada vez mais comum se deparar com a ideia de “racismo reverso” em discussões sobre racismo. Depois de acompanhar diversas conversas sobre sua existência ou não e de observar centenas de opiniões sobre o tema, me deparei com mais uma destas postagens aborrecidas. Dessa vez uma pessoa afirmava que a discussão sobre a inexistência do racismo reverso é uma desculpa dos/as negro/as para incentivar certo tipo de raiva contra pessoas brancas. Não é de se admirar, visto que, sinteticamente, o discurso que afirma a existência do racismo reverso é justamente uma forma de dizer que os/as negros/as podem exercer algum poder vexatório de discriminação em virtude de diferenças raciais contra brancos/as.
O texto que menciono não era especialmente diferente dos outros tantos que já havia lido a respeito. Mas me colocou a refletir novamente sobre o quão difícil é compreender que nossa revolta não é direcionada a pessoas em geral ou em específico, mas a um sistema de privilégios, discriminações e poderes que, fatalmente, se materializa na ação de determinadas pessoas.
Acredito ser possível afirmar que qualquer pessoa que teve sua trajetória pessoal marcada pelo racismo já experimentou esse estranho sentimento em que a raiva se mistura com impotência. Qualquer pessoa que já teve que engolir o choro enquanto apanhava na cara de um policial ou que teve uma arma apontada para a cabeça apenas por existir e transitar pelas ruas, que sempre temeu um falso flagrante ou uma execução, que cresceu tendo sua autoestima massacrada, se sentindo completamente inadequada, assediada e objetificada desde tenra idade, já sentiu isso pelo menos uma vez na vida.
No entanto, o mito da democracia racial nos tirou inclusive a possibilidade de sentirmos raiva por essas e tantas outras ofensas. Em uma sociedade que despende tanta energia para velar o racismo estrutural, a revolta não é permitida, porque o objeto a qual ela é destinada é considerado inexistente. A escravidão nos é ensinada como se fosse apenas um lamentável e rápido momento de uma história longínqua sem relação alguma com a configuração econômica e mesmo territorial do que se tornaram as cidades brasileiras, completamente cindidas racialmente.
Não importa o que dizem os dados de pesquisa e sua experiência pessoal: se as favelas e as cadeias estão abarrotadas de negros/as, se você fatalmente perdeu ou perderá amigos e/ou parentes em virtude da violência urbana direcionada, se a criminalidade, o futebol e a música são algumas das poucas e seletivas possibilidades para ascensão e reconhecimento social, nada disso interessa. E as portas giratórias? Aquelas que insistem em apitar toda vez que você passa. Ainda somos o elemento suspeito, isca de polícia, marginal padrão que coloca em polvorosa os vigilantes de lojas e mercados, sempre atentos às câmeras e corredores. Somam-se a isso os tantos lugares que nos são proibidos de ingressar, aquela pessoa grudada aos pertences no transporte coletivo, as rotineiras e truculentas abordagens policiais, a curiosidade com seu cabelo, a objetificação do seu corpo, a representação subalterna na mídia, a ausência nos espaços de poder e em trabalhos bem remunerados e mesmo aquela vez que te chamaram de macaco/a, fedido/a, feio/a ou nojento/a. Você sabe tanto quanto eu que a lista é grande.
O fato é que para qualquer coisa há uma explicação plausível, enquanto qualquer menção ao racismo é um completo absurdo. Basta lembrarmo-nos da grande e recente comoção daqueles contrários às ações afirmativas, e em específico, às cotas raciais nas universidades. Algumas das cabeças que se incumbiram de criar uma reflexão para embasar essa oposição, recorriam frequentemente à comparação das relações raciais nos EUA e no Brasil para dizer que o nosso contexto é absolutamente diferente e que, portanto, as ações afirmativas poderiam racializar o debate das desigualdades no Brasil e criar tensões raciais que nunca existiram.
Esta lógica pode ser muito bem observada em um texto de abril de 2012 da antropóloga e colunista do G1/Globo, Yvonne Maggie. Em seu texto “A constitucionalidade das cotas raciais no Brasil”, ela narra uma experiência que passou no Sul dos EUA antes da Lei de Direitos Civis e da Lei de Direito ao Voto dos negros. A autora faz referência ao movimento por direitos civis e cita o caso de Rosa Parks em Montgomery para contextualizar a situação que observou nos ônibus, a organização dos assentos por cor, banheiros e espaços nas lanchonetes que separavam negros e brancos. Com apenas 16 anos na época, e em suas palavras, sendo ela “brasileiríssima” – sugerindo que desconhecia completamente esses problemas –, ressalta que não havia entendido nada do que estava acontecendo ali.
Alguns anos mais tarde, depois da assinatura da Lei dos Direitos Civis, ela retorna aos EUA. Não havia mais aquela separação de brancos e negros nos ônibus, ainda que os EUA fosse um país cindido racialmente. Naquele momento ela teve a “exata noção do que significa viver em um país construído pela segregação legal”. Para sustentar sua opinião, a autora cita dois casos: em 1978 (Regents of the University of California VS Bakke) e 2003 (Grutter VS Bollinger ET al), em que as cotas raciais foram consideradas inconstitucionais pela Suprema Corte Americana. E na sequência, cita um caso de 2007. Nas palavras da autora,
"Em 2007, novamente, a Corte Suprema americana se viu diante da mesma questão, desta vez a respeito de crianças brancas que haviam sido preteridas em algumas escolas do distrito de Seattle que praticavam uma política de discriminação positiva. A corte decidiu que a cor da pele não deveria mais ser usada para matricular crianças em uma escola ou outra, pois segundo a maioria dos juízes, obrigar os indivíduos a se definirem racialmente tinha o efeito de perpetuar a proeminência da 'raça' na vida pública americana."
O texto de Yvonne Maggie foi publicado pouco antes do julgamento sobre a inconstitucionalidade das cotas na UNB e de alguma forma ela clamava pelo bom senso dos juízes do STF para que repetisse a decisão da Corte americana de 2007. A essa altura é difícil responder se a autora está mal informada ou mal intencionada, mas o fato é que o caso de 2007 tem pouco a ver com o nosso contexto e ela não dá elementos suficientes para apreciação dos leitores. Para uma melhor reflexão também seria necessário fazer algumas ponderações sobre o sistema educacional nos EUA, seu histórico segregacionista e os esforços empreendidos para integração.
A autora também falha em sua interpretação do exemplo de Rosa Parks. Segundo ela, aquele gesto em Montgomery que desencadeou muito do que se tornou o Movimento por Direitos Civis, tratava-se de extinguir a diferença e a desigualdade legal entre brancos e negros perpetuada até os anos 50. Até aqui, tudo bem. No entanto, a autora insiste que o caminho disso é, novamente, negar sistematicamente o racismo, pois as cotas são uma forma de dividir legalmente brasileiros brancos e negros, que nunca se distinguiram, segundo a gloriosa fábula dos três rios.
O sistema educacional estadunidense talvez seja o melhor exemplo para explicar  que decretar o fim das desigualdades que permeiam as relações sociais, sem criar alternativas efetivas para a integração e a equidade, é um projeto fadado ao fracasso. Para falar do referido Caso da Suprema Corte de 2007, é necessário lembrar do caso de Brown VS Board of Education (1954), uma importante vitória do Movimento dos Direitos Civis, quando a Suprema Corte estabeleceu a inconstitucionalidade da separação das escolas públicas para negros e para brancos. No entanto, ainda que a decisão afirmasse princípios de justiça e igualdade, no fim das contas, não havia nenhuma indicação sobre como seria feito na prática para produzir tais garantias no sistema escolar. Em 1955, vem uma nova decisão sobre a forma como a tarefa seria realizada, conhecida como “Brown II”, quando a Corte decidiu que o processo deveria ser realizado com “A máxima urgência”. Os responsáveis pelas escolas tiveram que criar formas de produzir integração racial da forma mais rápida possível e isso resultou em diversos casos de violência. Ainda assim, o impacto da decisão foi pequeno, visto que mesmo com a decisão pelo fim da segregação, negros e brancos continuavam a viver em bairros só de negros e só de brancos. Isto perdurou ao longo dos anos 1960 tanto pelos padrões da segregação demográfica, como por uma proposital configuração dos limites entre distritos educacionais, que por sua vez, também corroborava para a manutenção das crianças negras em escolas consideradas inferiores.
É importante salientar que tudo isso estava acontecendo após o advento da Lei dos Direitos Civis. Algumas iniciativas foram tomadas para tentar forçar a integração, como a obrigatoriedade das crianças irem de ônibus para as escolas em algumas cidades, o que também causou uma série de protestos. Um dos maiores exemplos disso foi o caso do Distrito Escolar de Louisville, Kentucky, que em 1975 foi forçado a ingressar no referido programa e isto desencadeou um protesto com mil pessoas no primeiro dia e que chegou a 10 mil pessoas (brancas) em enfrentamento com a polícia, várias prisões e depredação de carros.
Ao longo dos anos 1990 e 2000 a Suprema Corte diminuiu sua supervisão judicial para o fim da segregação nas escolas e deu margem para que os distritos criassem suas próprias formas de produzir a integração. É apenas nesse contexto que o caso citado por Yvonne Maggie se insere e ganha sentido. É curioso perceber que ela não nomeia o caso, mas trata-se do “Parents Involved in Community Schools VS Seattle School District No.1”, também conhecido como PICS, que teve por objeto o julgamento sobre a inconstitucionalidade do programa voluntário de integração racial e que envolveu (novamente) as cidades de Louisville, Kentucky (Tadan!) e Seattle, Washington. A decisão elogiada pela autora, retratada como uma forma de preterir a entrada de crianças brancas na escola a partir de uma “discriminação positiva” por inserir os negros, na verdade, se insere em um projeto político que representou um grande retrocesso nos esforços de produção da integração racial nas escolas. Vale lembrar que Seattle, além de ser marcada por uma grande segregação demográfica e econômica, passava por um momento de falta de vagas em suas cinco “high schools”, quer dizer, a falta de vagas nas escolas era algo que afetava toda a população, estudantes brancos e negros ficavam sem vagas e tinham suas inscrições negadas. O objetivo do processo era acabar com o plano de integração e assim fortalecer uma maior territorialização dos estudantes nos bairros em que moravam, impossibilitando que os estudantes concorressem às mesmas escolas em diferentes locais da cidade. Por fim, este caso recrudesceu uma argumentação que se inspira no caso de Brown, pois, se Brown alegava que a segregação era inconstitucional e feria a 14ª emenda, a alegação do caso PICS era que a classificação racial para o projeto de integração também feria.
Por fim, ela cita um dos juízes no caso do PICS em 2007, que afirmou: “Fazer com que a raça tenha existência agora para que não tenha no futuro fortalece os preconceitos que queremos extinguir”.  Ora, “Fazer com que a raça tenha existência”? A “raça” teve suficiente existência e foi um argumento válido durante alguns séculos como justificativa para um sem número de barbaridades, e ainda é. O que esse pensamento produz é uma inversão bastante cínica ao afirmar que a “racialização” é um problema que pode vir a existir um dia, de acordo com as decisões políticas e judiciais do presente. E esta não é uma afirmação que estou fazendo por conta própria, isso é algo que está dito na “Carta dos cento e treze cidadãos antirracistas contra as leis raciais”, entregue ao Presidente do STF em 2008. Portanto, é como se a busca por ações afirmativas não fosse um combate às desigualdades que estão colocadas, mas a própria causa de algo que ainda não existe. Mais do que ilógico, esse argumento é um insulto e faz parte do imaginário delirante de uma elite que vive em um mundo de pôneis e algodão doce.
A opinião majoritária dos defensores dos Direitos Civis é que o caso de 2007 retoma os anos 1970 ao limitar as experiências das escolas integradas. E mesmo que ainda seja possível que os Distritos Escolares produzam voluntariamente programas deste tipo, existe uma grande pressão para que abandonem esses esforços visto que os pais brancos têm recusado ferrenhamente estes programas e entrado com processos em tribunais com a acusação de “discriminação reversa”. De fato, e ainda que de uma maneira sutil, o processo de segregação vai crescendo de modo considerável. A partir da gestão de George Bush, particularmente, o conservadorismo cresceu e o projeto educacional se tornou ainda mais enfático na perspectiva de que as desigualdades devem ser ignoradas e o “mérito” deve ser o fator central independente de qualquer tentativa de ação afirmativa ou produção de equidade.
A lógica que subjaz os raciocínios que tentei demonstrar está longe de ser particular de um grupo de autores. Isto pode ser visto de uma forma brilhante no trabalho da psicóloga Lia Vainer Schucman, que em entrevista ao Opera Mundi (março de 2015), falou sobre sua pesquisa que resultou em sua tese de doutorado defendida na USP e que recentemente foi publicada em livro, com o título “Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo”. A autora tematizou a “branquitude”, o que lhe interessava era compreender como que as representações sobre raça e diferenças raciais apareciam na fala de pessoas brancas em relação ao fato de serem brancas. Dentre os diversos aspectos interessantes de sua pesquisa, ela afirma que dos 40 entrevistados a quem perguntou se acreditavam ter privilégios por serem brancos/as, todos/as responderam que sim. Dentre os casos exemplificados, demonstra a fala de um morador de rua da Praça da Sé que afirma poder ir ao banheiro do shopping, enquanto seu companheiro negro é barrado; uma empregada doméstica que acredita que se fosse negra não teria o emprego, pois a patroa é preconceituosa, e ainda, um jovem que acredita que se fosse negro teria problemas em seu relacionamento pois o pai de sua namorada é preconceituoso. Em seguida, ela perguntou se eram a favor das cotas nas universidades e 37 dos 40 entrevistados responderam: “não, somos todos iguais”.
A autora aponta os problemas em torno da fragmentação desse discurso que possibilita de uma forma irracional que a pessoa diga que tem privilégios e imediatamente depois afirme que “somos todos iguais”. Acredito ser possível afirmar que é este mesmo discurso fragmentado que está implícito no texto de Maggie (e tantos outros), assim como em toda defesa contra as ações afirmativas, no temor de criar um país racializado, nos argumentos sobre a inexistência do racismo e no mito da democracia racial.
Ao que tudo indica nossa maior dificuldade no combate ao racismo no Brasil trata do fato de que o racismo aqui é velado de toda forma possível, no limite do absurdo. Quando penso em possíveis comparações com os EUA, o que me vem imediatamente é que lá essa tensão é colocada de fato. Pelo menos desde Marcus Garvey, da Black Star Line e o Back-to-Africa Movement uma questão definitiva foi colocada aos negros: é possível ser negro nos EUA? É possível construir uma vida enquanto negro aqui? É possível tentar uma vida aqui ou nossa única chance é voltar à África? Não se tratava de uma metáfora, não era uma imagem idílica de uma África imaginada, tratava-se em última instância da possibilidade real de viver ou não naquele país, tratava-se de vida e morte. Algo que guarda semelhanças no mínimo interessantes com as recentes movimentações da Marcha Contra o Genocídio da População Negra e da Campanha Reaja e seu poderoso mote: “Reaja ou será morta, reaja ou será morto”. Porque no fim do dia, é disso que se trata e é isso que está em jogo: a vida e a morte.
Esta tamanha dificuldade em se admitir e enfrentar o racismo em nosso país se materializa no fato de que nós não somos ensinados/as a nos defendermos dele. Nesse sentido, me parece correto afirmar – dessa vez em caráter mais assertivo – que de certo ponto de vista, ninguém nasce negro/a no Brasil. E assim, salvo raras exceções, somos jogados/as em um mundo que vai cuidadosamente dimensionando e nos informando sobre diferenças, possibilidades e limites, sem que se fale explicitamente disso. No fim das contas, o racismo no Brasil é um mamífero enorme e dissimulado vestido de bailarina, tentando caminhar com suas sapatilhas sem fazer barulho.
É claro que “se tudo sair bem”, você conseguir contrariar as estatísticas e ultrapassar os 27 anos, o tempo engrossa a casca: apesar de toda dissimulação desse sistema, conseguimos ser criativos e aprender como sobreviver. Assim, mais do que a cor da sua pele, suas características físicas, o local em que você nasceu/vive e sua descendência, ser negro no Brasil é um projeto, um devir lentamente produzido na vivência e trajetória pessoal de indivíduos marcados pelo pronunciamento mais ou menos evidente de uma diferença negativa (sim, sempre negativa). Até o ponto em que a sinuosidade das mensagens vai ganhando corpo e se torna possível compreender um pouco melhor a imagem tortuosa do quebra-cabeça.
Contudo, a partir desse aprendizado marcado a ferro e fogo em nossos corpos e mentes, o empoderamento sobre a nossa história, trajetória e experiência parece ser absolutamente ofensivo para algumas pessoas e elas rapidamente se levantam esbravejando denúncias sobre uma tentativa de “racializar” esse lindo país mestiço e demolir sua convivência pacífica e igualitária. É no mínimo curioso perceber que frequentemente o argumento do “racismo reverso” aparece ao final das discussões, como uma alternativa desesperada para tentar aplacar as vozes que dizem ao Rei que ele está nu. O que, sejamos sinceros, não passa de uma forma polida do antigo “negro insolente!”. Não raramente, esta denúncia de “racismo reverso” vem acompanhada de seu primo próximo, o “colorismo”. Se desde cedo aprendemos que tudo não passa de um grande mal entendido e toda ofensa é um exagero, no limite, a branquitude racista resolve desfazer o mal entendido sobre quem somos: pode ser o seu cabelo, seu nariz, sua boca, seus traços, seu nível educacional, econômico ou qualquer outro diacrítico para dizer que no fundo, “você não é tão preto/a assim”. De uma forma ou de outra, o que importa é negar a existência do racismo de qualquer maneira e eliminar de todas as formas os/as pretos/as perigosos/as.